quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Crítica: "Luke Cage"

Luke Cage
Data de lançamento: 30/09/2016
Distribuição e disponibilidade: Netflix
Produção: Cheo Hodari Coker


       Terceiro fruto da recente parceria entre Marvel e Netflix (os outros dois são "Jessica Jones" e "Demolidor"), "Luke Cage" segue, em muitos sentidos, o altíssimo padrão estabelecido por estas produções. Por outro lado, é capaz de criar algo absolutamente único. O segredo do imenso sucesso dessas séries está em saber utilizar a maior duração propiciada por seu formato de exibição para captar e explorar a essência de seus personagens principais, fazendo das séries verdadeiros estudos de personagem. Foi assim com as complexas discussões sobre justiça e vingança envolvendo o advogado Matt Murdock e a clara alusão ao abuso por parte de Killgrave em "Jessica Jones". "Luke Cage" não é diferente.
          Desde seu anúncio muito se falou que estas séries produzidas pela Netflix seriam mais "urbanas" em relação às produções cinematográficas da Marvel. O que descobrimos posteriormente é que essa redução de escala também influenciaria diretamente o tipo de narrativa que se pretendia construir. Não digo isso de forma alguma para diminuir as séries em relação aos filmes: a questão aqui é que elas são muito mais intimistas. Com algo em torno de 12 horas de duração em mãos, os produtores conseguem fazer muito mais do que desenvolver de maneira perfeita seus personagens principais: eles criam um mundo ao seu redor. "Luke Cage" não é só sobre o herói brega da Marvel dos anos 70. "Luke Cage" é sobre o Harlem, é sobre o que significa ser deste lugar em específico, sobre passado, presente e futuro, sobre relações de poder, sobre sonhos e esperanças. De modo geral, sobre pessoas comuns, as que conseguem quebrar uma parede de tijolos com um soco e as que não conseguem.
          A inteligência da série criada por Cheo Hodari Coker está em sua capacidade de criar um grande leque de perspectivas (até mais do que nas outras duas séries), todas fruto de personagens primorosamente construídos e desenvolvidos. Além do próprio Luke Cage, os vilões "Cottonmouth" e Mariah Dillard discutem questões muito profundas de sonhos passados, realizações presentes e expectativas futuras. Estas ideias são sempre retomadas ao longo dos episódios e muito bem representadas também no excelente personagem de "Pops", dono da barbearia em que Luke trabalha. Um ex-gângster, "Pops" volta ao Harlem e faz de sua barbearia uma "Suiça", uma zona neutra imune de violência onde as crianças do bairro possam trabalhar e brincar em segurança. Em suma, ele é alguém que acredita e luta por um futuro melhor para sua comunidade. Questão essa também muito abordada politicamente pela vereadora Mariah, sob um panorama distinto.
         Há um trabalho de produção excepcional envolvendo a criação desta série. Além de memoráveis locações como a barbearia de Pops e a boate Harlem's Paradise, o esmero empregado pelos produtores reflete diretamente na existência de um ambiente vivo. A trilha sonora da série é fantástica, desde a incrível abertura, às performances ao vivo na boate de "Cottonmouth" (que conseguem introduzir a música de forma orgânica na trama), até um rap feito sobre Luke Cage mais para o fim da série que é simplesmente fenomenal. As diversas manifestações artísticas oriundas do Harlem e da comunidade negra norte-americana ganham grande expressão na série, algo muito bem expresso no uso genial que a série faz do um poster de um coroado Notorious B.I.G. (a cena está presente em um dos trailers, vale a pena dar uma conferida). Diga-se de passagem, alguns dos melhores momentos da série estão nos primeiros episódios, que enfocam na relação entre Luke Cage e "Cottonmouth" e utilizam uma iluminação estupenda para criar lindas e impactantes composições visuais.
         O roteiro trabalha de maneira muito interessante a "história de origem" de Luke Cage, uma vez que todos os acontecimentos passados tem um impacto direto na trama presente. Os flashbacks não são muitos e aparecem nos momentos certos. A série é também muito bem sucedida ao explorar a relação estabelecida entre Cage e a polícia local, evitando a atitude padrão "herói super poderoso escapa fácil da polícia que assiste sem ação". A personagem da detetive Misty Knight é praticamente tão protagonista da série quanto o próprio herói, possibilitando a exploração de um panorama muito interessante sobre os eventos da série, algo que desenvolve muitos dos questionamentos já levantados em "Demolidor". 
         Há uma clara tensão entre a população do Harlem e a polícia, reforçado pelo fato de que a trama explora constantemente a ideia de uma opinião pública, fortalecendo aquele sentimento de ambiente vivo e a impressão de que cada uma daquelas pessoas é importante. "Luke Cage" é o tipo de produção que sabe exatamente o peso que tem no mundo moderno e em nenhum momento se esquiva disso. A palpável tensão racial nos Estados Unidos gera constantes manifestações da população negra contra o abuso de força policial, portanto, ter um super herói negro atuando no Harlem é algo extremamente significativo. Essa discussão se faz muito presente nos diálogos, com o destaque do simbolismo existente na concepção de um homem negro à prova de balas que enfrenta tudo de peito aberto. Estes momentos de reflexão talvez sejam a melhor coisa que "Luke Cage" tem a oferecer.
            No entanto, a série não é perfeita. O principal problema de "Luke Cage" está em seu roteiro e sua estrutura geral. Não vou entrar em nenhum tipo de spoiler aqui, mas basta saber que os primeiros sete episódios da série são bastante diferentes dos outros seis, por conta de um certo acontecimento impactante. Não que a série chegue a exatamente decair na segunda metade, acho inclusive muito boa a solução encontrada pelos produtores para o problema de um protagonista indestrutível como Cage, mas o caminho tomado empalidece um pouco em comparação aos desenvolvimentos iniciais. Há também uma série de pequenos furos de roteiro que não são muito incômodos em si, mas que acabam sendo quando considerados em conjunto, tornando-se um pouco frustrante quando uma enorme coincidência acontece, de novo. Há também uma certa inconsistência nas atuações, principalmente o personagem de Theo Rossi, "Shades", que toma uma série de atitudes forçadas dentro da história e parece sempre prestes a demonstrar uma evolução... coisa que nunca acontece.
            O protagonista Mike Colter dá também suas escorregadas quando a série lhe exige um maior peso dramático em sua reta final. Na maior parte do tempo, entretanto, ele é ótimo e consegue conferir ao personagem o carisma necessário para que a breguice característica de Cage ("sweet christmas!") sirva constantemente à série como um alívio cômico. De modo geral, ele faz jus ao personagem e carrega a série em suas costas (perdão pelo trocadilho infame) com muita competência . Eis meu balanço geral: "Luke Cage" tem sim seus defeitos, mas estes são perfeitamente normais para uma série de tv que cria e utiliza tantos elementos complexos e difíceis de trabalhar (sem contar a necessidade de conexões com as outras séries do mesmo universo). O que realmente importa é o número de acertos de "Luke Cage" é muito maior e significativo que o de seus erros, constituindo uma série bem-sucedida em criar algo ao mesmo tempo empolgante e socialmente relevante, que sabe ter suas origens na cultura nerd, mas também na cultura negra. Uma série não só diz, mas demonstra: Black Lives Matter.








Excelente

Por Obi-Wan

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